Primavera dos Dentes

[Sobre amor, liberdade e outras coisas –principalmente as vermelhas]

07:00 – Amarelo

Acordou atrasado. Expulso da cama pelo fedor insuportável, prendeu a respiração enquanto arrumava-se apressado – não gostava de se olhar no espelho e hoje tinha uma desculpa perfeita. Jogou água no cabelo, um punhado de gel, duas passadas de mão e estava pronto, escovou os dentes e correu decidido pelo apartamento. Lá fora, livre do mau-cheiro, mas incomodado com outra coisa – um sonho a tentar se fazer lembrar talvez – teve um sono agitado e despertou de mau jeito.

Parou em frente ao apartamento do síndico e tocou a campainha, poucas e boas na ponta da língua, mas que foram se perdendo a cada respiração. Virou-se em direção às escadas. A porta abriu, apertou ainda mais o passo, em fuga. Lembrou que odiava confrontos.

No carro enquanto procurava o telefone do encanador se condenava – que bela maneira de começar o dia, o cheiro de merda a prenunciar o cagaço à porta do síndico.

8:00 – Verde

Observava Beatriz a desfilar pelo Escritório, passo leve, sorriso no rosto a me levar com ela, a me desafiar. Nunca prestei atenção nas mulheres. Nunca tinha me interessado por gente. Este período em que estou morando sozinho é o mais feliz da minha vida. Sou senhor do meu destino, controlo meu mundo com precisão matemática por que eliminei as variáveis incontroláveis da loucura humana. Não gosto das pessoas, não confio, acho estranho ter que dividir do meu espaço, do meu tempo, da minha vida com alguém. Definitivamente sou um solitário – e isso me basta.

Mas por que então ela me intriga tanto? Desde que começou a trabalhar aqui eu que sempre fui concentrado fico a divagar, perdido pelo escritório a imaginar vidas que ao a minha – vidas com e sem ela.

Decido buscar um café, deixar o amargo levar essas leviandades embora. Afasto a cadeira e recebo um golpe quente no colo, manchando a camisa, a calça. Levanto de imediato, Beatriz a desculpar-se naquela preocupação cuidadosamente exagerada destas situações. Tento responder que tudo bem e seguimos neste balé cotidiano, de passos ensaiados aos quais sempre me faltou o jeito.

Foi aí que as mãos se encontraram. O toque macio da mão suave foi como uma pedra minúscula, que arremessada interrompe a milenar tranqüilidade de um lago profundo a espalhar ondas que subiram pelo braço, arrepiaram a nuca, acenderam alguma coisa no meu cérebro, um sentimento inexplicável, um querer e receio, ímpeto e hesitação, agitação que ameaçava transbordar e tomar todo meu ser.

Como eu queria correr dali, mas a sensação da mão delicada era o conforto dessa urgência. Repousei essa sensação naquele toque que me levava agora ao refeitório, Beatriz ainda desculpando-se. Ao chegar as mãos começaram a dedicar-se ao inútil processo de tentar limpar o estrago ao tecido. Minhas mãos interceptaram as dela, os olhos encontraram-se, o silêncio, o tempo, o rosto curioso a adivinhar, o lábio esboçando alguma reação, hesitação, larga minhas mãos e sai, me deixando a refletir sobre o último olhar, que nunca decifrarei.

Volto a trabalhar, diferente, outra pessoa, em outro mundo, não sei qual. Cantarolo a canção “love will tear us apart”.

10:00 – Preto

A luz é clara, branca e banha a sala com uma palidez entediante que combina com o trabalho mecânico, asséptico, inodoro, insosso. Tudo que se percebe no escritório é o martelar dos teclados. Imagino um tambor ritmado, sou um escravo em um navio romano, sinto o chacoalhar do navio, a umidade no meu corpo e o gosto salgado na boca, a dor muscular, o cheiro de mar e suor, mas antes de imaginar meu destino o tec-tec desgraçado me traz de volta ao inferno com ar condicionado.

Tento me distrair de outra maneira, fecho os olhos e continuo preenchendo  as planilhas com números aleatórios – sei que ninguém vai notar. Entro em sintonia com a música do escritório e de repente sei com o que se parece. Sou um prisioneiro em alguma guerra no oriente, vitima daquela tortura da qual só ouvi falar, incapaz de me mover recebo um incessante gotejar na testa. TEC-TEC-TEC…. Vou enlouquecer.

11:00 – Branco

Conto as respirações esperando me acalmar – invoco alguma paisagem, uma praia calma imediatamente tragada no redemoinho daquilo que se libertou. Encoleirado desde cedo ao agrado dissimulado aos pais, a obediência pastoral às professorinhas alimentei um monstro que hoje finalmente ganhou o dia naquela criaturinha mais obediente, mais alinhadinha, mais certinha… Cordeiro vinha como sempre no seu cuidado e educação habitual. Cheio de dedos, acabou perdendo um.

Finalmente consigo me encarar no espelho. Vejo um rapaz de cabelo curto, liso, com um penteado convencional, um rosto absolutamente comum e esquecível, daqueles que se perdem facilmente em qualquer aglomeração, apenas o nariz hebreu a se destacar. De todas as mudanças de uma vida e uma personalidade que fora destruída e que estava sendo reconstruída em uma manhã talvez lembre desta como o marco do novo homem que sou, mais ainda que a ato de violência que cometi.

Um dia ouvi sem querer os colegas do trabalho a comentar uma característica minha, uma que os deixava nervosos, o olhar sem repouso, como que procurando – ou fugindo de algo, mas agora, no espelho os via curiosamente fixos, corajosos, livres do trabalho de carcereiros.

Ainda com a carne borrachenta passeando entre os dentes, percebo que estou satisfeito.

12:00 – Vermelho

O Sangue escorria pelo queixo, empapava a camisa mas o único vestígio a permanecer na boca era o salgado que talvez o levasse novamente à visão do barco de escravos romanos. Mas deixou as visões de lado, já não serviam ao propósito de antes. Ao contrário, agora maravilhava-se com o real, e lembrou do conteúdo cru em sua boca, em um último devaneio lembrou de outra coisa que havia lido, das feras que ao experimentarem carne humana não queriam saber de outra coisa. Será verdade? Correria o risco?

Retirou da boca o pedaço de carne retorcido que agora em nada parecia com um dedo humano, mordiscou retirando um pequeno pedaço de carne fibrosa e sem muito gosto, depois uma mordida maior. Parecia frango. A terceira mordida e sua língua foi tomada pelo gosto, era a melhor coisa que jamais experimentara. Sentiu-se como se estivesse degustando todo esse novo mundo ao qual estava fechado e o dia de hoje apresentou. – talvez fosse esse mesmo o sabor que experimentou, a liberdade depois e uma vida inteira em um cárcere auto-imposto. Ou talvez fosse algo mais sinistro, um segredo que agora partilhava com os predadores.

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